Saccharomyces é a família de leveduras mais amplamente utilizada na produção cervejeira, superando de longe outras leveduras como Brettanomyces e leveduras selvagens ou domésticas de outras famílias. Três espécies de Saccharomyces são especialmente utilizadas, sendo elas Saccharomyces cerevesiae, Saccharomyces pastorianus e Saccharomyces bayanus.
A Saccharomyces cerevesiae é a clássica levedura de alta fermentação, usada nas cervejas da família Ale, como as IPAs, Weizen, Stouts e Dubbel. A Saccharomyces pastorianus encontra aplicação em cervejas de baixa fermentação, a família das Lagers, como Pilsener, Bock, Munich Helles e Rauchbier. Já a Saccharomyces bayanus é uma família de leveduras comumente usada em Champanhe, mas que pode ser encontrada em cervejas de alta fermentação de estilos diversos com o nome Brut. São as chamadas Brut Beers, como a famosa Deus, uma Belgian Golden Strong Ale, acondicionada em garrafas de champanhe e com várias peculiaridades em seu processo produtivo.
É correto dizer que cada cepa de leveduras possui sua característica. Por exemplo: leveduras de champanhe são afamadas pela secura extra que produzem em cervejas, às custas de um elevado tempo de fermentação, claro. Todavia, algumas cepas de Saccharomyces cerevesiae também possuem a capacidade de metabolizar açúcares complexos. São normalmente cepas belgas, como a Lallemand Belle Saison.
Mas e se existirem outras leveduras da família das Saccharomyces? E de fato existem! Uma delas e talvez também uma das mais interessantes é a Saccharomyces boulardii, uma família de leveduras isolada das cascas de Linchia. Nativos da Indonésia tinham o hábito de mastigar cascas da fruta com o intuito de se livrarem dos efeitos da cólera. O pesquisador francês Henry Boulard foi o primeiro a isolar a referida levedura, que mostrou ser não patogênico e atuar no equilíbrio da flora intestinal humana. Em decorrência dos benefícios, várias empresas começaram a comercializar cápsulas de Saccharomyces boulardi liofilizada.
Ora, antes de tudo, a Saccharomyces boulardi é uma levedura, como a Saccharomyces cerevesiae. Foi comprovado que ela possui a capacidade de promover a fermentação alcoólica e que tinha boa tolerância ao álcool bem como a valores reduzidos de pH. Pudera, porque para fazer efeito essa levedura precisa passar pelo estômago humano, que é ácido.
Em testes realizados por homebrewers americanos, os mesmos relataram forte presença de ésteres que remetem a frutas vermelhas como linchia. Teores alcoólicos de até 8% foram obtidos com essa levedura, isso em testes gerais. Aumentando a especificidade do mosto de forma a criar um ambiente propício a essa levedura é possível que o teor alcoólico seja superior. Além disso, o resultado é uma cerveja bastante seca e perfumada, além de, se não for pasteurizada, poder ser usada como probiótica.
Sugestões de uso:
Um amigo cervejeiro com quem mantenho contato, que possui sete anos a mais que eu em brassagens, certa vez me disse algo que venho trazendo comigo desde então: não trabalhe com muitas variáveis e crie uma cerveja que lhe permita sempre perceber aquilo que você pretende observar.
É fato que boa parte dos cervejeiros caseiros atualmente iniciaram no hobby em decorrência de seu primeiro contato com cervejas americanas bem lupuladas, e não há nada de errado nisso. De fato, os lúpulos americanos são fantásticos, explosivos em sabor e aroma, e podem agregar muito a uma cerveja.
Todavia, aqui estamos falando de levedura, não de lúpulo. Não raras as vezes o caseiro coloca uma carga elevada de lúpulo em sua cerveja, o que praticamente inibe todas as propriedades que ela, a cerveja, pode ter. Novamente, nenhum problema nisso ou com isso. Cada qual com seu qual. A questão é que se o foco é a levedura, isto é, se se quer conhecer uma levedura desconhecida e entender como é o perfil que ela oferece, o ideal é usar um mosto neutro e uma lupulagem neutra.
Como teste, uma boa pedida é um mosto com maltes base de gosto fraco, como o Pilsen e o malte de Trigo. Numa proporção de 1:1 cria-se um mosto neutro o suficiente para permitir o aparecimento das características da fermentação. Outra coisa a ser levada em conta é a quantidade e momento de adição de lúpulos. Lúpulos pouco aromáticos, como Hallertrau Tradition são uma boa pedida, usado para amargor e se houver lupulagem de aroma, que seja de no máximo 0,25 g/L, e mesmo assim numa adição feita aos 15 minutos.
Como o comportamento da levedura é desconhecido, não vale a pena fazer uma Sour logo de cara, mesmo porque pode ser que a levedura gere alguma acidez. Um amargor elevado também pode ser prejudicial, já que a avaliação é da fermentação, sabendo ainda que a presença de amargor e acidez pode prejudicar as propriedades sensoriais da cerveja. A sugestão é de um IBU entre 8 e 12.
Com um pouco de ousadia...
Com um pouco de ousadia é possível galgar resultados mais arrojados baseando-se em resultados de outros. Como já é relatado que essa levedura produz uma cerveja seca e frutada, ela pode ser uma boa pedida em uma fruit beer ou em uma Sour Ale qualquer que leve adição de frutas, como uma Catharina Sour. Ainda: é possível fazer uma batelada usando S. boulardii, Lactobacillus brevis e Brettanomyces (de qualquer espécie) e outra batelada usando S. boulardii e Lactobacillus brevis. Tendo sido feita a prova das cervejas prontas, pode-se compor um blend* entre ambas.
Indo um pouco mais além, pode-se usar algum probiótico, como Kefir ou Kombucha para promover a acidificação do mosto, fazendo-se assim uma cerveja probiótica.
*Blend é um termo muito usado em cervejas especiais. É uma técnica na qual se misturam cervejas de perfil fermentativo diferente ou cervejas de idades diferentes, em dadas proporções, a fim de se conseguir características sensoriais que não seriam atingidas com as componentes da mistura puras.
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