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Wild Beers e Lambics: o que são?

A rigor, uma cerveja é composta por água, malte, lúpulo e levedura. Adjuntos como frutas, mel, açúcares, cereais não-maltados, especiarias e outros podem ser também adicionados. Com Lambics (e seus pares) e Wild Beers, a história muda um pouco: não há levedura! Ao menos não exatamente, e explico.
Na verdade toda cerveja precisa de levedura para promover a fermentação. Todavia, nos primórdios da civilização, quando o homem dominou o cultivo de grãos e tempos depois, a produção de cervejas, ninguém sabia exatamente se existia ou não a vida microscópica. Até o século XIX, quando Louis Pasteur demonstrou que microrganismos existiam e isolou as primeiras cepas de levedura, era comum pensar que a fermentação era efeito da cerveja e não a causa dela. Confuso? Hoje sim, porque sabemos. Na época fazia muito sentido e ainda faz. De fato, a fermentação só está lá porque existem nutrientes quistos pelos microrganismos fermentativos. Então, de certa forma, os antigos tinham razão.
É certo que se tinham hábitos que hoje sabemos que eram seletores de leveduras. Por exemplo: monges separavam frações de cerveja que deram certo para batizarem o mosto cervejeiro frio, a pá cervejeira era passada de pai para filho depois de se constatar que aquela pá fazia cerveja boa, etc. Pelo sim pelo não, esse conhecimento popular foi uma mão na roda para Pasteur que pegou, claro, uma sopa de microrganismos diversos, mas já pré-selecionados por anos e anos de prática. Isso facilitou seu trabalho. Vale lembrar que muito antes de se falar em fermentação por microrganismos, os monges trapistas já tinham, a seu modo, "isolado" leveduras fantásticas acidentalmente. Na verdade eles criaram meios dessas leveduras serem dominantes num determinado ambiente, mas isso não dispensava o consumo precoce da cerveja, porque como não se conhecia a contaminação, ignorava-se que o contato da bebida fria com fontes de bactérias iriam causar a contaminação por lactobacilos e outros microrganismos deteriorantes. De fato, os lactobacilos são um problema na preservação de alimentos. Deixe uma panela de feijão cozido fora da geladeira por 24 horas, destampada, e prove depois de passado esse tempo. Tente não vomitar.
A questão relevante é que por um bom tempo se pensou que a cerveja fosse um processo natural (e de fato era), sendo que as Lambics, Geuzes e Wild Beers são o que mais se aproxima da cerveja primitiva nos dias de hoje. Qualquer dia escreverei sobre como a cerveja era feita na Suméria e à partir daí vocês tirarão suas conclusões, isto é, se faz sentido dizer que aquilo era cerveja. Minha opinião é que se era, o que temos hoje não é.
Lambics e Wild Beers, como já dito, não levam adição de leveduras como outras cervejas comuns. Ao invés disso, o ambiente no qual se produz a cerveja é condicionado. Como assim? Ora, as cervejas que deram certo são borrifadas no ambiente interno das cervejarias, levando bactérias e leveduras selvagens para as partes mais altas. À medida que o mosto esfria, grânulos de poeira caem em cima dele, levando consigo os preciosos microrganismos que passam a devorar os nutrientes do mosto. Não explicarei aqui a diferença desse processo para o processo de produção de Ales/Lagers, porque creio que todos conhecem bem.

O processo de produção:

A diferença começa na brassagem. O grits das Wild Beers americanas e das Lambics/Geuzes belgas costuma ser parecido: 60 - 70% de malte base, normalmente Pilsen e 30 - 40% de trigo não-maltado. Os grãos são arriados na tina de mostura com uma quantidade de água aquecida suficiente para apenas umedecê-los. Uma rampa de 10 ou 15 minutos é feita aos 45 ºC. Em seguida, água fervente é jogada na panela para elevar a temperatura para 55 ºC. Nova rampa de 10 ou 15 minutos é feita. Uma porcentagem do mosto é recolhida e levada para outra tina, sendo aquecida a 88 ºC. Mais água fervendo é adicionada, elevando a temperatura para 65 ºC. Uma porcentagem do mosto é novamente recolhida e levada para a outra tina, sendo aquecida a 88 ºC. Devolve-se tudo à tina de mostura, fazendo o mash out. Recolhe-se o mosto, lavam-se os grãos e faz-se a lupulagem, com lúpulos envelhecidos por até 3 anos, numa proporção de 4 a 5 gramas por litro.
O lúpulo usado já não têm mais alfa-ácido, e sim óxidos de alfa-ácidos. Os beta-ácidos, também oxidados, atuam como conservantes. Mas o chamariz é o ácido isovalérico, que surge com o envelhecimento do lúpulo, tendo notas "agradáveis" de salgadinho cheetos sabor queijo. Há quem chame de cheiro de chulé. Já tomou chá de raiz de valeriana? É aquele cheiro lá.
A fervura chega a durar 4 horas e o resfriamento ocorre naturalmente, em tina aberta. Depois de resfriado, o mosto está "contaminado" com bactérias e leveduras selvagens do interior da cervejaria no que se chama de "etapa de ganho". A fermentação se inicia e a cerveja é acondicionada em barris de carvalho, onde ela segue por um período que vai de 1 até mais de 3 anos, dependendo da cerveja.
O amargor do lúpulo some nos primeiros meses. A acidez toma conta, a cerveja se avinagra em decorrência da fermentação acética, aroma funky começa a se desenvolver entre o sexto e nono mês e o resultado final é uma cerveja com pronunciada acidez lacto-acética e de sabor/aroma bastante polêmico.

Lambic ou Wild Beer?

Tem gente que insiste em chamar sua cerveja, feita no Brasil, de Lambic. Legalmente ninguém pode fazer isso, porque Lambic tem denominação de origem, e só pode ser produzida legalmente na Bélgica, em Bruxelas. E de fato, não há a menor possibilidade de uma cerveja brasileira ficar igual a uma Lambic. São muitas variáveis, como clima, umidade, comportamento das leveduras e bactérias em um região ou em outra, enfim, não rola.Você tem todo direito de chamar sua cerveja do que quiser, mesmo que tenha feito uma Stout e resolva chamar de Pilsen (a relação da sua cerveja com uma Lambic legítima é mais ou menos essa).
Os americanos de um tempo pra cá têm empregado esforços no que chamam de Wild Beer, que são cervejas de fermentação espontânea, como as Lambics, mas com lúpulos e leveduras americanas, no carvalho americano e num ambiente americano. Não é necessário dizer que não são como as Lambics, embora tenham semelhanças sensoriais e no processo de produção.
Lambic é feita em Bruxelas, ponto. Se foi feita na área de serviço da sua casa, é sua cerveja de fermentação espontânea, "tipo Lambic", mas não estilo Lambic. Fácil entender, mas a cerveja é sua, você chama do que quiser.
Frequentemente essas cervejas possuem notas amadeiradas, terrosas, florais, frutadas, de couro molhado, bode, estábulo, curral, cela de cavalo e plástico queimado, por exemplo. Todos esses aromas polêmicos, aparentemente desagradáveis, compõem o chamado "funky" das cervejas de fermentação espontânea, ou "funk", termo que no Brasil é bom evitar por razões óbvias.
São cervejas ácidas, muito polêmicas (óbvio) que se caracterizam por melhorarem com o tempo de guarda. A Geuze Marriage Parfait, por exemplo, pode ser guardada por 3 décadas.
Muitas cervejas nesse figurino recebem frutas (no caso das belgas, são as Fruit Lambic), que ajudam a atenuar as características agressivas no olfato e paladar. Nesses casos, essas cervejas recebem elevada carbonatação e ficam similares a um champanhe, razão pela qual são por vezes chamadas de cervejas champanhadas, ao passo que Lambics puras frequentemente não são carbonatadas.

E no Brasil? Estamos bem, obrigado!

Ainda não provei nenhuma Wild Beer de cervejarias brasileiras, embora saiba que existem projetos de algumas cervejarias nesse sentido (parabéns a elas, de verdade). Fato é que por aqui temos muito mais condição que os gringos de inovarmos nesse sentido, a começar pela variedade de madeiras que podemos usar em nossos barris. Por aqui temos o carvalho nacional, castanheira, amburana, balsamo, jatobá, jequitibá e vários outros barris com enorme potencial para aplicação nesse sentido.
Temos nossas frutas tropicais e já temos até mesmo nosso próprio lúpulo nacional. Além disso, num país tropical como o nosso há uma enorme variedade de leveduras e bactérias selvagens, de cepas diferentes das que ocorrem nos países temperados, que certamente podem produzir bebidas interessantes.
Fiz várias cervejas de fermentação espontânea seguindo um método relativamente seguro para tal. Pretendo divulgar aqui em breve, a fim de estimular mais cervejeiros a seguirem esses passos e, quem sabe, poderemos um dia galgar mais um estilo cervejeiro nosso, que tal como o estilo Lambic, possa ter denominação de origem. Por que não?

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