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Brettanomyces: uma paixão além do tempo!

Brettanomyces é uma família de leveduras, como Saccharomyces, de quem as primeiras são parentes. As Brettanomyces por vezes são chamadas na literatura científica de Dekkera, sendo a distinção entre os nomes apenas no que se refere à forma de propagação delas. Como o objetivo do presente texto não é uma abordagem estritamente científica, isso não será abordado a fim de que mais pessoas consigam entender o que são as Brettanomyces e a fim de que um pouco do mito acerca dessa levedura seja quebrado.
Atualmente no mercado existem três espécies de Brettanomyces comercializadas e uma subespécie de uma das espécies. São elas: Brettanomyces claussenii, Brettanomyces Bruxelensis (e a subespécie Brettanomyces bruxelensis trois) e Brettanomyces lambicus. Vamos falar de cada uma delas separadamente mais adiante, mas por hora vamos abordar características gerais dessas leveduras.
As Brettanomyces, diferentemente das Saccharomyces, são leveduras "especializadas" em consumo de açúcares de alto peso molecular. Isso significa que as Brettanomyces conseguem metabolizar açúcares maiores que os que são normalmente metabolizados pelas Saccharomyces, como maltotriose, dextrinas e, inclusive, açúcares bastante complexos, como amido. É bom lembrar, entretanto, que a capacidade de metabolizar o amido é latente, isto é, ela se desenvolve de acordo com a necessidade do microrganismo.
As Brettanomyces tem esse nome em decorrência de terem sido descobertas na Inglaterra. De fato, Bretta é o prefixo grego de "fungo britânico", e inclusive as primeiras aplicações dessa levedura isolada foram para refletir propriedades de cervejas inglesas de alta fermentação da era pré-pasteuriana, onde não havia isolamento de leveduras.
Essas leveduras rebeldes, como diz certa matéria do Estadão, são muito presentes também em Lambics, as famosas (e polêmicas) cervejas ácidas belgas. A ironia é que as Brettanomyces só tomaram a proporção que tomaram em decorrência de cervejas belgas, não de cervejas inglesas.

Lambic e Brettanomyces

Falar em Lambic é falar de uma cerveja mística e mítica. Mística, porque a complexidade dessas cervejas é tão alta que é impossível precisar o que é que causa tantas sensações diferentes em uma cerveja dessas. Mítica, porque erroneamente algumas pessoas atribuem toda a complexidade de uma Lambic à Brettanomyces, como se uma Lambic fosse fermentada apenas por Lactobacillus, Pediococcus, Saccharomyces, Brettanomyces e Acetobacter.
A verdade é que podem chegar a existir mais de 80 espécies de microrganismos diferentes em uma Lambic. Seu processo de produção é complexo, com grits constituído de 60 a 70% de malte Pilsen e 30 a 40% de trigo não-maltado. A brassagem é conduzida por Turbid Mash (que será abordado aqui em outra ocasião), um processo que promove a sacarificação incompleta do mosto, restando nele grandes quantidades de amido e açúcares complexos. Lúpulos velhos são usados, fornecendo altas quantidades de ácido isovalérico (que remete a queijo, como aqueles salgadinhos Cheetos). A quantidade de lúpulo varia de 4 a 5 gramas por litro de mosto, sendo que não faz sentido falar em IBU nessas cervejas, haja vista que os alfa-ácidos estão oxidados. Mesmo assim há um amargor que desaparece com o tempo.
A fermentação de uma Lambic pode chegar a três anos de duração, sendo comum uma Lambic jovem ter passado um ano em barris de carvalho. A grata surpresa é que exemplares de Geuzes, cervejas parentes das Lambics, podem ser guardadas por três décadas, com melhora gradual em relação ao tempo de guarda.
As Brettanomyces mais comuns nas Lambics são Brettanomyces lambicus e Brettanomyces bruxelensis. Vale dizer que não se produz Lambic fora da região de Bruxelas, por ser produto com denominação de origem. E não, você, brasileiro, jamais conseguirá produzir uma cerveja igual por aqui, mesmo que siga o figurino à risca (isso será abordado em outro texto).
A alta quantidade de açúcares complexos em um mosto de Lambic, causa do Turbid Mash (ou brassagem turva) favorece o desenvolvimento pleno das potências dessa cerveja, porque os microrganismos levarão muito tempo para produzir as características, lentamente.

Brettanomyces: espécies, subespécies e características

As Brettanomyces comerciais mais comuns são Brettanomyces lambicus, Brettanomyces bruxelensis (e a subespécie bruxellensis trois) e Brettanomyces claussenii. Há marcas importadas de leveduras que vendem também Brettanomyces anomalus.

Brettanomyces lambicus: famosa por estar quase sempre presente em cervejas do estilo Lambic. Essa levedura produz muito caráter funky na cerveja, remetendo a bode, cela de cavalo, estábulo, curral, plástico queimado, fumaça e terroso. Boa parte desses aromas é atenuada com o tempo de maturação, sendo que muitas vezes ésteres remetendo a cereja surgem na cerveja.
A Brettanomyces lambicus costuma ser a mais funky das Brett. Normalmente é utilizada em fermentações secundárias ou em refermentação na garrafa. O desenvolvimento das características Brett começa com cerca de seis meses.
Produz cervejas bastante secas, como todas Brettanomyces, com FG da ordem de 0,996. Alguns cervejeiros relatam adição dessa levedura já na fermentação primária, em competição com a Saccharomyces, e relatam bons resultados. Como toda Brettanomyces, a Brettanomyces lambicus desenvolve-se melhor em pH ácido, por isso é tão comum encontrar essas leveduras em Sour Ales.

Brettanomyces bruxelensis: também muito presente nas Lambics, mas ao contrário da Brettanomyces lambicus, não produz caráter funky tão intenso, sendo que também existe a possibilidade dela produzir notas florais. A Brettanomyces bruxelensis é significativamente menos agressiva no paladar que a Brettanomyces lambicus, sendo uma boa pedida para quem deseja uma pegada funky mais suave. Notas de abacaxi são relatadas em algumas cepas dessa espécie. Sim, cepas. Assim como a Saccharomyces, a Brettanomyces também possui cepas com características distintas. Assim, não é exagero encontrar Brettanomyces de qualquer espécie que seja, mas de marcas diferentes, com características diferentes.

Brettanomyces bruxellensis trois: é uma subespécie da Brettanomyces bruxellensis, mas comumente usada em fermentação 100% Brett, dependendo da marca. Possui características similares às da Brettanomyces bruxellensis.

Brettanomyces claussenii: possui uma particularidade interessante de não gerar tanto caráter funky, sendo responsável, na verdade, pela geração de grande quantidade de ésteres que remetem a frutas maduras e, principalmente, abacaxi. Produtores alertam sobre os riscos dela gerar grandes quantidades de acetato de etila (cheiro de esmalte de unha) em presença de grande quantidade de oxigênio. A Brett claussenii apresenta também maior dependência de valores de pH mais ácidos.

Quando e como usar?

As Brett têm tomado cada vez mais popularidade no meio cervejeiro, sendo que boa parte do medo de contaminação pelo uso dessa levedura têm se dissipado. Todavia é bom deixar claro: todos equipamentos que tomarem contato com a Brettanomyces devem ficar exclusivamente para ela. Não é trivial se livrar de uma contaminação por Brettanomyces, e normalmente ninguém consegue se livrar. Essas leveduras disparam esporos (filhotes) muito duros, que resistem a altas temperaturas, sanitizantes, valores agressivos de pH etc.
Essas leveduras vão bem em vários estilos cervejeiros. A trapista Orval, por exemplo, utiliza essas leveduras em suas cervejas, o que traz complexidade e melhora com o tempo de guarda. Especialmente estilos belgas combinam mais com essas leveduras, como a série trapista contendo Brettanomyces claussenii, dando maior apoio frutado a essas cervejas. São comuns também no estilo Saison, que originalmente era contaminado com essas leveduras.
Brettanomyces são indispensáveis em Flanders Red Ales e cervejas tipo Lambic, mas existem também as chamadas IPAs brettadas ou Brett IPAs, que são cervejas com forte apoio lupulado e com fermentação primária ou secundária de Brettanomyces.
O uso típico mais comum de Brettanomyces é em fermentações secundárias, para realçar características da levedura da fermentação primária ou para trazer complexidade que a levedura primária não traz.
Muitos cervejeiros se queixam de explosão de garrafas usando Brettanomyces, o que é, de fato, um risco. As Brettanomyces podem tolerar até 12% de álcool e são muito mais resistentes à hostilidade de uma cerveja pronta que outros microrganismos. Elas se alimentam de açúcares complexos, deixando a cerveja mais seca e menos encorpada, assim como se alimentam também de metabólitos secundários da Saccharomyces, como diacetil e álcoois superiores. Sabe aquela cerveja sua que poderia ter ficado melhor? Pois bem, a Brettanomyces pode ajudar a corrigir problemas que a Saccharomyces gerou e não conseguiu corrigir.
O pitch rate dessas leveduras é bastante discutido, sem muito consenso entre as pessoas que estudaram o tema. Por via das dúvidas é melhor seguir as recomendações do fabricante.
Se usadas na fermentação primária, as Brettanomyces podem perder a capacidade de metabolizar açúcares complexos e, de repente, despertarem alguma capacidade latente, que pode causar explosão de garrafas. O uso combinado com Saccharomyces em fermentações primárias reduz o risco, já que a Saccharomyces é mais rápida que a Brettanomyces. Entretanto, é necessário acompanhar a FG por algumas semanas até ela se estabilizar.
E não se assuste com a capa branca. As Brettanomyces geram um filme branco de aspecto asqueroso por cima da cerveja. É perfeitamente normal isso acontecer. O priming pode levar mais tempo que o de uma Ale comum, chegando a demandar até dois meses para carbonatar uma cerveja brettada.
A espuma pode ser prejudicada com uso de Brettanomyces. Uma boa saída é blendar a cerveja com 10 a 30% de suco integral de abacaxi, haja vista que esse suco forma espuma por um princípio diferente da espuma da cerveja. Todavia, uma alta carga de maltes especiais pode contornar o problema também, sendo que esses maltes podem deixar um dulçor residual que equilibrará com cervejas mais ácidas, como é o caso das Flanders Red Ale, que chegam a ter 30% de maltes especiais.
O quando usar dependerá muito de cada um. Alguns passarão a vida toda sem querem usar Brettanomyces, já outros irão querer usar essa levedura nas receitas mais improváveis, como numa Munich Helles (e é óbvio que isso é zuera).

Tempo

O tempo de fermentação de uma Brett Beer é uma incognita, mas sejamos francos: de qual cerveja não é? Os neófitos se iludem com a "regra dos sete dias" e saem fazendo verdadeiras granadas caseiras com produção de cerveja High Gravity que demandam, inclusive, adições posteriores de leveduras para a conclusão da fermentação. A questão é muito simples: acompanhar a FG e usar uma boa calculadora cervejeira.
No meio das brettadas também há as lendas negras, que conduzem muitos ao erro e à produção de garrafas explosivas. Alguns dizem que o ideal é deixar um mês (claro, a levedura possui um relógio e um calendário, além de ter consciência das metas de tempo que precisa bater, né?), outros dizem que a Brettanomyces atenuará até 0,996, 0,997 ou 0,998 de FG, dependendo do doido que diz (porque como todo mundo sabe, a levedura tem densímetro e, inclusive, umas falam para as outras: aí galera, não podemos atenuar mais que 0,996, falou?).
Minha opinião, pautada na experiência que já tive com essas leveduras: tudo papo furado. Já fiz uma cerveja brettada que atenuou em 0,997, outra que atenuou em 1,001 e outra que chegou a 0,995. Pouca coisa, dizem alguns. É, é sim! Em termos de ABV, talvez, em termos de carbonação não! Um priming eleva coisa de 0,2% no ABV. Uma cerveja com OG de 1,077 terá 0,2% de diferença no ABV se sua graduação alcoólica ficar em 0,997 ou 0,996. Daí você vai lá e mete 7 gramas de açúcar por litro com uma FG de 0,997 e envasa. Uma semana depois e... cabum! Lá vai você usando capacete limpar a sujeira e abrir as sobreviventes antes que elas explodam também.
A resposta pra essa questão é: não há resposta exata. As Brettanomyces ainda são muito selvagens e imprevisíveis, muito mais que as Saccharomyces. A solução é aguardar e ir testando a SG por duas semanas, anotando os valores, até ver que estabilizou. Teste a SG com refratômetro dia sim, dia não, e vá anotando. Se estabilizar, aguarde uma semana e torne a medir. "Vou perder muito tempo", dirão alguns.
Olha, normalmente não leva mais de um mês pra atenuar, mas você quer mesmo usar Brettanomyces e falar em tempo? Você vai ter que esperar seis meses para uma B. lambicus ou uma B. bruxellensis desenvolver o funky na cerveja. Que diferença faz aguardar na bombona ou na garrafa? Pois é...
Outros ainda perguntarão: mas se ela estará desenvolvendo o funky, não estará gerando mais gás dentro da garrafa? Aí é que está a mágica: não! Não necessariamente as transformações de uma cerveja são acompanhadas de liberação de gás. A levedura usada em Weizen, por exemplo, produz ácido acético e álcool isoamílico. Depois, ela consome esses dois compostos gerando acetato de isoamila, o éster da banana, sem gerar gás no processo. Surpreendente, não?
A minha sugestão é essa: da primeira vez que usar, deixe dois meses pra depois envasar. Acostume-se com a Brettanomyces, veja a redução da SG com o tempo de fermentação da levedura. Só depois que estiver confiante e verificar se o comportamento da levedura está de acordo com uma boa calculadora cervejeira reduza o tempo, até encontrar um tempo que você suporte esperar.

Créditos:

Faz parte da integridade divulgar as fontes. Para escrever esse texto consultei vários sites de produtores de leveduras e também a enciclopédia Milk The Funk. A imagem do texto é a imagem de um biofilme de Brettanomyces, oriunda do blog do link abaixo. Não divulgarei aqui os sites dos produtores porque o objetivo não é fazer propaganda gratuita pra ninguém.

http://ryanbrews.blogspot.com/2011/02/brettd-beers-my-take-on-adding.html

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