Pular para o conteúdo principal

Por uma Wild Beer legitimamente brasiliana! Bora?

Em outro texto expliquei o que são Wild Beers e Lambics, por alto, claro. Nesse texto pretendo falar um pouco sobre a forma como fiz algumas Wild Beers com relativo sucesso, bem como as modificações que pretendo fazer no método. O objetivo é ambicioso: criar uma cerveja legitimamente brasileira, como a Catharina Sour, mas impossível de ser produzida em outro lugar no mundo, como as Lambics. Acompanhe o textão.

Há muitos e muitos anos o homem aprendeu a dominar a fermentação. Entretanto, enquanto na produção de cervejas a tecnologia evoluiu muito em termos de levedura, na produção de vinhos de mesa não houve uma diferença tão grande, como houve na cerveja. Em tempo: não estou aqui a julgar produtores de vinho, bebida que também aprecio, nem para dizer que há demérito na produção de vinho ou para dizer que enólogos são inferiores. Longe de mim fazer algo do tipo. Cada qual com seu trabalho e com seus méritos, e o simples fato do vinho ser uma bebida mais glamorosa que a cerveja já mostra que os enólogos não estão para brincadeira, nem os cervejeiros. Mas a ideia de uma Wild Beer brasileira que tenho traz uma interseção entre três universos: o das cervejas comuns, o das Wild Beers e o dos vinhos.
Ora, como eu disse, não há demérito algum na forma como muita gente faz vinho. A ideia é usar essa forma, mas na cerveja. O vinho de uva ou simplesmente vinho é por vezes produzido sem adição de levedura. Novamente, há produtores e produtores, vinhos e vinhos. Estou falando aqui de uma das tantas formas de se produzir, é claro.
O processo de produção de um vinho começa na colheita. Depois as uvas são prensadas, o esqueleto dos cachos é descartado e então as cascas, bagaço, suco e sementes são reunidos numa tina de fermentação. Por três dias essa tina é revolvida várias vezes. Após isso, deixa-se o mosto em descanso por dois dias e então é feita a sangria, que consiste em separar o caldo do bagaço. A essa altura, as leveduras das cascas já estarão se deleitando com os nutrientes do mosto.
No processo ordinário, metabissulfito de potássio é adicionado em várias etapas da produção a fim de controlar as populações de microrganismos, de forma que bactérias e leveduras indesejadas não infestem a bebida. Mas aqui fica uma pergunta: indesejadas para quem? Para os vinhos, claro. As bactérias são principalmente Lactobacillus, Pediococcus e Acetobacter. As tais leveduras indesejadas são nossas amadas Brettanomyces. Então deixemos os enólogos produzindo vinhos excelentes sem esses agentes, e façamos cervejas excelentes com esses agentes.
Em nenhuma das vezes que fiz Wild Beer com vinhos de frutas diversas eu matei gente. Deixei todo mundo vivo, porque o que é defeito em um vinho, como curral, estábulo, couro molhado, acético, láctico, é qualidade em uma Wild Beer.
O modus operandi que fiz várias vezes (e que funcionou muito bem) foi o seguinte: preparei o vinho de fruta. Os melhores resultados que tive foram com abacaxi em uma cerveja e uva em outra, numa proporção de 30% do volume final.
Quando fiz a sangria, direcionei o vinho (em fermentação) para um fermentador fechado. Quando a atividade do airlock atingiu o ápice, preparei um mosto cervejeiro comum, pouco lupulado (5 IBU, lúpulo só no amargor, porque aroma de lúpulo não é o foco), e joguei ele frio em cima do vinho, dentro do fermentador. O resultado que obtive foi: cervejas bastante secas, com alto caráter funky e com alto caráter de fruta. Fiz questão de envasar em garrafas de champanhe para que aguentassem maior carbonatação. Usei 12 gramas de açúcar por litro no priming, obtendo cervejas efervescentes, refrescantes, que melhoraram muito com o tempo de guarda.

Proposta atual:

A proposta atual é basicamente a mesma, mas com duas modificações elementares. A primeira delas é fermentar em barril de madeira nacional, não em balde. A segunda é usar o método de Turbid Mash (que descreverei em breve aqui no blog) para produzir o mosto.
O grits deve ser algo que dê caráter maltado, sem ficar excessivamente doce. O design seria similar, no paladar, ao de uma Flanders Red Ale, ou seja, uma cerveja agridoce e balsâmica. Entretanto, percebi que nessas cervejas o uso de maltes muito escuros não funciona bem. Então tive a ideia de substituir o malte especial escuro pelo claro e me veio a ideia de usar o malte CaraClair, ou equivalente, numa proporção de 20%. O restante do grits seria de 60% de malte Pale Ale e 20% de algum adjunto, como o milho, que é nacional.
Seguindo o figurino belga, a ideia de adicionar uma erva ou especiaria é especialmente tentadora. Devido às características sensoriais dessas cervejas, pensei em raiz de valeriana, mas não estou muito seguro acerca do uso dessa planta em decorrência de alguns efeitos colaterais dela no organismo, o que pode ser uma combinação perigosa com o álcool. Em todo caso farei um estudo detalhado sobre isso.
A madeira a ser escolhida dependerá da cerveja em si. Como a amburana tem forte caráter de amêndoas, creio ser uma boa pedida para uma cerveja com mais cara de inverno. Existem outras madeiras promissoras, como o bálsamo e a castanheira, sendo que essa última é a que mais se aproxima do carvalho europeu, segundo algumas pesquisas que fiz.
O melhor resultado que obtive até hoje foi com o vinho de abacaxi. A cerveja final ficou cítrica, com sabor ácido pronunciado, numa mescla delirante de ácido cítrico e ácido láctico. Além disso, o abacaxi contorna um problema preocupante nessas Wild Beers: a ausência de espuma. O abacaxi é rico em saponinas, substâncias que formam espuma e na experiência que tive com essa fruta, a resiliência é excelente, chegando a formar rendado. Além disso, o abacaxi é uma fruta nativa do Brasil.

O preparo do vinho:

O abacaxi é muito ácido, e por isso seu manuseio deve ser feito com cautela e atenção. Facas de aço-carbono não podem ser usadas, porque deixam um gosto metálico na bebida (falo por experiência própria). A ideia é cortar o abacaxi devidamente lavado com escova em cubos, retirando a casca e reservando-a. A polpa da fruta é então processada em liquidificador ou processador, a fim de se extrair o suco. O bagaço com o suco é colocado em um fermentador e a casca vai junto. O fermentador deve estar fechado, mas permitindo a troca gasosa, com entrada de oxigênio. Três vezes ao dia, por três dias, o fermentador é aberto e o mosto é revolvido. Depois de três dias, deixa-se decantar por 48 horas e a sangria é feita, com auxílio de um voil para filtrar a fibra. Pode-se extrair o máximo de suco possível.
O suco em fermentação é então disposto em um barril de madeira. Quando for observada intensa atividade no airlock é preparado o mosto cervejeiro, com baixíssimo IBU e mesmo assim, apenas com lupulagem de amargor. Aroma de lúpulo não é bem vindo nessa cerveja. O mosto é preparado por Turbid Mash, para garantir um pleno e lento desenvolvimento da cerveja. Não estamos falando em semanas, mas meses de fermentação. Um ano, pra ser mais exato.
Depois de adicionado o mosto, ele segue para a fermentação até completa atenuação, usando as leveduras e bactérias do vinho. Bactérias conseguem resistir até 5 IBU de amargor. A ideia é não passar disso.
Depois de um ano, a cerveja é envasada em garrafas de champanhe, com alta carbontação.

Contato

Se caso alguém tiver interesse nessa empreitada, de desenvolver esse novo estilo, entre em contato comigo pelo e-mail: eduardomarquesmoreira@gmail.com

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Fontes Alternativas de Bactéria: bora tentar?

Introdução geral: bactérias e sua importância: Para a maior parte das cervejas, são uma praga! Para outras, uma dádiva. São elas as protagonistas de hoje: as bactérias! Quem nunca fez uma Weiss que ficou com um biofilme por cima, um cheiro que remete a Iogurte e um sabor azedinho? Felizmente, eu não! Mas já vi acontecer muito isso, principalmente em cervejas pouco lupuladas. As bactérias estão por toda parte e crescem numa velocidade muito maior que as leveduras. A maior parte delas é esmagada por compostos do lúpulo fresco, mas algumas resistem bem a esses compostos, havendo até aquelas que são imunes a eles. As bactérias que nos interessam são de dois tipos: as de fermentação láctica e as de fermentação acética. Vamos abordar cada caso com os principais exemplares. As bactérias de fermentação láctica são as que fazem o primeiro trabalho de decomposição dos alimentos e são as principais responsáveis por azedar coisas em casa, como feijão e arroz amanhecido. São também

Funky: o que é?

Acima de tudo é uma propriedade amada por uns e odiada por outros. Mas o que é, efetivamente, o funky? O funky é uma mistura de aromas e cheiros gerados por algumas espécies de Brettanomyces. Dentre eles, elencam cela de cavalo, curral, plástico/borracha queimada, bode, estábulo e queijos azuis (que alguns chamam também de chulé, vai entender). Esses aromas são gerados num primeiro momento devido ao metabolismo das Brettanomyces, que ao contrário do que alguns dizem por aí, gera álcool na fermentação, assim como as Saccharomyces. Todavia, nem só álcool gera a levedura. As Brettanomyces geram também ácidos valérico e isovalérico e outros compostos, como álcoois superiores semigraxos que possuem certo cheiro desagradável para alguns e agradável para outros. Basicamente, o queijo azul surge por causa dos ácidos valérico e isovalérico. Esses dois ácidos são associados também ao fedor de chulé. Estão presentes nas raízes de Valeriana, uma planta usada para fazer um chá calmante e anticonvu