Introdução geral: bactérias e sua importância:
Para a maior parte das cervejas, são uma praga! Para outras, uma dádiva. São elas as protagonistas de hoje: as bactérias!
Quem nunca fez uma Weiss que ficou com um biofilme por cima, um cheiro que remete a Iogurte e um sabor azedinho? Felizmente, eu não! Mas já vi acontecer muito isso, principalmente em cervejas pouco lupuladas.
As bactérias estão por toda parte e crescem numa velocidade muito maior que as leveduras. A maior parte delas é esmagada por compostos do lúpulo fresco, mas algumas resistem bem a esses compostos, havendo até aquelas que são imunes a eles.
As bactérias que nos interessam são de dois tipos: as de fermentação láctica e as de fermentação acética. Vamos abordar cada caso com os principais exemplares.
As bactérias de fermentação láctica são as que fazem o primeiro trabalho de decomposição dos alimentos e são as principais responsáveis por azedar coisas em casa, como feijão e arroz amanhecido. São também elas quem produzem a coalhada de leite, o iogurte e o leite fermentado, além de estarem presentes em vários tipos de queijos. Ora, essas bactérias são também reguladoras da flora intestinal e promovem uma fermentação anaeróbica, isto é, na ausência de oxigênio, podendo gerar um biofilme sob o mosto cervejeiro.
Duas famílias nos são de especial interesse: Pediococcus (carinhosamente chamadas de Pedio) e Lactobacillus (chamados também de lactobacilos). Essas bactérias reduzem o pH do meio, tornando-o azedo, devido à transformação de açúcares em ácido láctico.
Outro tipo de bactérias são aquelas de fermentação acética. Diferentemente das bactérias lácticas, as acéticas precisam de oxigênio para fermentarem. Elas consomem o etanol e o transformam em ácido acético, que é o mesmo ácido do vinagre (tão somente em presença de oxigênio, é bom lembrar). A principal família é a das Acetobacter.
Azedar antes ou durante?
Na natureza, a fermentação láctica ocorre primeiro. Depois, quando o pH reduz tornando-se hostil às bactérias, as leveduras que suportam bem a acidez passam a fermentar o que restou. Por fim, quando o teor alcoólico aumenta, as bactérias acéticas entram em ação, convertendo o álcool em ácido acético, gerando vinagres diversos, a depender da fonte.
Numa fermentação espontânea, é bem provável que as três classes de microrganismos atuem. Tanto é verdade que Wild Beers, de uma forma geral, possuem álcool, ácido láctico e ácido acético.
Para azedar o mosto antes, duas técnicas são empregadas. A primeira delas que quero citar é a técnica alemã, chamada de Sour Mash. Nela, após a mosturação e antes da lavagem dos grãos, o cervejeiro adiciona à mistura de malte e água uma porção de malte cru, que é rico em bactérias lácticas. Quando o pH desejado é atingido (algo em torno de 3,5), o cervejeiro segue o processo normalmente, com recolhimento do mosto primário e lavagem de grãos (que é opcional).
A outra técnica é a técnica americana, chamada de Kettle Sour. Nela, o cervejeiro prepara o mosto e ferve o mesmo por 5 minutos, mas não adiciona lúpulo. Após resfriado até a temperatura de fermentação láctica (algo entre 40 e 50 ºC), inocula-se a fonte de bactéria (será abordado mais adiante) e aguarda-se, aquecendo-se o recipiente, até o pH desejado ser atingido. O mosto é então recolhido sem passar o biofilme e o trub para a panela e segue para fervura. Depois disso, o cervejeiro ferve o mosto e adiciona o lúpulo, seguindo o processo normal.
Há também a técnica roubada, que é muito pobre. Trata-se de simplesmente adicionar ácido láctico ao mosto até atingir o pH desejado. A desvantagem desse método é que outros metabólitos das bactérias não serão gerados. Tal qual as leveduras, bactérias geram compostos secundários que dão complexidade à bebida. A simples adição de ácido lático não trará esses compostos secundários, dando origem a uma cerveja que é apenas ácida e muito sem graça.
A técnica mais hardcore é a da escola belga, como sempre. Nela, bactérias e leveduras são "adicionadas" ao mesmo tempo, num processo de fermentação espontânea controlada. Assim, bactérias e leveduras competirão entre si pelos nutrientes do mosto, sendo que o par Pediococcus e Brettanomyces formarão uma espécie de simbiose na qual uma consome o que a outra produz.
Cabe ao cervejeiro decidir qual técnica usará. Particularmente eu prefiro misturar Lactobacillus e Pediococcus de uma fonte pura com as leveduras, havendo Brettanomyces no meio. Acho os resultados mais interessantes.
Fontes de Bactérias:
Várias coisas podem ser usadas como fonte de bactéria. Há fermento láctico próprio para iogurtes vendido em sachê, que pode ser usado. A marca mais popular no Brasil é a dinamarquesa BioRich. É uma boa forma de se usar bactérias selecionadas.
Iogurtes e leites fermentados vivos: são ricos em bactérias lácticas e podem ser usados como fonte de bactéria. O ideal é não despejar um pote de iogurte ou leite fermentado na cerveja. É bom fazer um starter, usando DME como nutriente, similarmente ao que se faz no starter de leveduras. Uma colher de chá para cada litro de DME a 1,040 de OG é o suficiente, lembrando de aquecer o meio a fim de que as bactérias se propaguem. A propagação pode ser feita em uma iogurteira. Um starter de 24 horas é o suficiente para azedar as coisas.
Chucrute: o caldo do chucrute vivo (repolho fermentado) é uma fonte preciosa e fácil de Pediococcus. Muito útil para fermentação competitiva, onde há Brettanomyces, principalmente. A mesma técnica de starter descrita no tópico anterior pode ser usada.
Malte: é a fonte menos pura e mais insegura de bactérias. Ali não se sabe exatamente o que se tem, podendo haver também leveduras selvagens. Não recomendo usar isso como fonte de bactéria em fermentação paralela, sendo mais apropriado para Kettle Sour ou Sour Mash. Para fazer o starter, 50 gramas de malte triturado em DME são suficientes.
Kefir: o ideal é se usar o kefir de água. O kefir é um filme simbionte de vários microrganismos, como leveduras e bactérias. É seguro para ser usado em fermentação paralela, mas é bom dizer que haverá a formação de novos grãos de kefir que deverão ser retirados ao fim da fermentação. As cervejas preparadas com Kefir têm propriedades similares às das Lambics.
Scoby de Kombucha: o Kombucha é um chá fermentado do extremo oriente. É preparado pela inoculação de um filme simbionte que pode conter mais de 70 espécies de microrganismos (leveduras e bactérias) em um mosto de chá de camélia (chás branco, verde e preto). Homebrewers americanos relatam cervejas feitas somente com a scoby, sem adição de leveduras, que são chamadas de Lambrucha nas terras do Tio Sam. O nome remete, com razão, a Lambic. A primeira etapa da fermentação é semi-aberta, com um voil cobrindo o fermentador. Quando o pH atinge o valor quisto, fecha-se o fermentador para que as Acetobacter parem de fermentar, deixando apenas as leveduras fermentando. Nas scobys foram encontradas Brettanomyces diversas, Saccharomyces diversas, Pediococcus e Lactobacillus. O resultado final é uma cerveja avinagrada. Tal qual o Kefir, é seguro usar as scobys em fermentações paralelas, mas a cerveja final ficará com uma película do biofilme de scoby no topo.
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