Pular para o conteúdo principal

Turbid Mash: como fazer?

Introdução geral:

Chegou o tão sonhado post que venho prometendo há tempos: o que trata de um processo de mosturação totalmente atípico para quem está habituado a fazer cerveja. Os melhores resultados conseguidos em Wild Beers são seguindo esse método. Talvez por isso tantos caseiros reclamam que suas fermentações espontâneas não dão certo, isto é, o cervejeiro prepara um mosto comum, como qualquer outro, deixa a cerveja ao tempo e espera a fermentação ocorrer naturalmente, sem adição de leveduras.
Posso apresentar pelo menos 3 problemas com esse método tradicional. O primeiro deles é que uma Wild Beer produzida por ele não terá tempo para amadurecer, posto que a maioria dos caseiros não tem a paciência necessária para respeitar os tempos de guarda de Wild Beers, que podem facilmente passar de 1 ano. Lambics, por exemplo, podem levar mais de 3 anos para ficarem "no ponto". O segundo problema é a fonte de leveduras e bactérias que o cervejeiro caseiro tem a sua disposição. Primeiro, é importante se certificar que há segurança no ambiente. Isso significa que em hipótese alguma o cervejeiro deve deixar sua cerveja aberta em um quintal no qual são criados animais. Fezes e urina carregam uma infinidade de bactérias patogênicas, que podem causar desde uma simples diarréia até complicações hospitalares irreversíveis. Portanto, para fermentar uma cerveja naturalmente, certifique-se de que ela estará em um local distante de animais de estimação, mesmo os do seu vizinho. Normalmente, um voil deve ser colocado sob o recipiente que contém o mosto e para um maior sucesso, é bom deixar o recipiente embaixo de uma árvore frutífera. Esses cuidados garantirão que caiam apenas partículas extremamente pequenas no mosto, carregando bactérias e leveduras selvagens, necessárias a uma Wild Beer. O terceiro problema é que, como a pressa é grande, o cervejeiro irá querer envasar a cerveja com o tempo padrão de uma Ale comum. No entanto, bactérias e leveduras selvagens podem continuar atenuando o mosto, consumindo açúcares mais complexos do mesmo e quando você se der conta, pimba!: terá um bom lote de granadas caseiras, excelentes para a prática de terrorismo, mas péssimas para sua segurança e consumo.
O Turbid Mash força o cervejeiro a aguardar. Meu humilde palpite: não há necessidade de se controlar a temperatura. Por experiência própria, notei que leveduras da cidade onde vivo, selvagens, não fermentam nada abaixo de 15 ºC. Minha primeira Wild Beer foi feita com mosturação comum e temperatura controlada, mas só observei atividade no airlock quando subi a temperatura de fermentação para 22 ºC. Lembre-se: estamos falando de leveduras de um país tropical, adaptadas ao clima tropical, isto é, temperaturas elevadas. Como a fermentação do mosto preparado por Turbid Mash é lenta (devido à presença de amido, dextrinas e demais açúcares complexos), então o mosto levará muito tempo para atenuar, porque embora as leveduras selvagens consigam, em tese, secar mais uma cerveja, elas demandam muito tempo para tal, afinal elas não foram selecionadas em laboratório para fermentarem nada com velocidade elevada. São pouco seletivas, mas muito lentas.
Em tempo: nem pense em colocar num mosto produzido por Turbid Mash as cepas de Saccharomyces comerciais sozinhas. Elas não consomem açúcares complexos e são impróprias para esse tipo de mosto. Tudo que você conseguirá é uma cerveja bastante encorpada (literalmente, viscosa como mingau de maizena [tá bom, exagerei]), enjoativamente doce e com baixo teor alcoólico. É preciso mesclar leveduras, se possível Saccharomyces e Brettanomyces, bem como adicionar bactérias, como Pediococcus e Lactobacillus, para a experiência dar certo.

Senta que lá vem a história:

O Turbid Mash surgiu na Bélgica por volta do ano de 1822, quando o governo, em sua infinita sabedoria (eles são demais), resolveu taxar as cervejarias baseando-se no tamanho de suas tinas de mostura. Ora, os belgas então tiveram uma ideia: mosturar o máximo possível com as menores tinas que pudessem. O resultado disso foi um mosto com gelatinização precária, com alto teor de açúcares complexos, como amido e dextrinas.
Viajantes notavam que as cervejas belgas assumiam um caráter encorpado, com elevado dulçor de grãos e sem muito teor alcoólico. Os produtores locais resolveram empregar a técnica para a produção das Wild Beers belgas, isto é, as Lambics (cervejas produzidas na região de Bruxelas, com denominação de origem e, portanto, proteção legal ao nome). O sucesso foi imediato. Cervejas ácidas, com notas balsâmicas, lácticas e, é claro, o funky.
De certa forma, as Lambics são o que mais se aproximam hoje da cerveja primitiva. No passado, os grãos de malte eram triturados e amassados em forma de pães. Esses pães eram dispostos em prateleiras suspensas sob o fogo de fornalhas, que "assavam" os pães em temperaturas "brandas". Esses pães eram debulhados e colocados em tinas contendo água, onde a fermentação ocorria. Ora, a cerveja final era uma bebida viscosa e doce, com teor alcoólico significativamente menor do que a cerveja que conhecemos hoje. Aliás, por um bom tempo, a cerveja foi considerada uma refeição, uma espécie de caldo. Na Suméria, as mulheres que trabalhavam em padarias preparavam a bebida, que era aspirada com aparelhos similares às pipas de chimarrão a fim de que houvesse a filtragem dos bagaços de pão. E outra curiosidade: várias pessoas sentavam-se em torno da tina onde tinha ocorrido a fermentação para consumirem uma mesma cerveja, com várias pipas inseridas nela.
A sacarificação primitiva ocorria em um pão, algo muito mais próximo de um sólido do que de um líquido. A cerveja então era produzida com um mosto rico em carboidratos complexos, assim como o mosto do Turbid Mash. E a fermentação era espontânea, já que a microbiologia sequer era conhecida naquele tempo. A diferença fundamental é que a cerveja era consumida fresca, ao passo que as Lambics são cervejas velhas e que melhoram com o tempo.
Na Europa, a produção da cerveja ficava ao encargo das donas de casa, com a conotação de alimento e não de bebida alcoólica, coisa que era atribuída ao vinho e ao hidromel.

O processo:

Vamos pegar um caso prático e hipotético para facilitar as coisas. Assim, por regra de três simples qualquer um poderá adequar o Turbid Mash à sua realidade.

Suponhamos que você queira fazer 60 litros de cerveja. Nesse caso há uma particularidade para os que usam o fundo falso, que será citada logo adiante. O primeiro passo é colocar 20% de todo o volume de água a ser usado na brassagem na panela de mostura e aquecer essa água para que a temperatura inicial da mostura seja de 45 ºC. Assim sendo, serão necessários aqui 12 litros de água (20% de 60) e mais o volume morto do fundo falso, quando for o caso. Logo, se você tem uma panela com volume morto de 4 litros, serão necessários 12 litros + 4 litros, o que soma 16 litros. Arreie os grãos na panela de forma que a temperatura após a adição dos grãos seja de 45 ºC. Será necessário pelo menos 50 ºC de temperatura da água para compensar a dissipação que o malte causará. No meu caso, aqueci até 55 ºC quando fiz, e a temperatura caiu para 45 ºC. Deixe descansar em 45 ºC por 15 minutos. Caso a água apenas umedeça os grãos, recircule o mosto algumas vezes, regando a cama.
Aqueça os 80% da água restantes (48 litros) até a ebulição. Junte à panela de mostura 20% da água fervida (12 litros) para elevar a temperatura a 52 ºC. Deixe descansar por 15 minutos;
Transferir 1/3 dos volumes adicionados (8 litros) para a panela de fervura e aquecer até 88 ºC. Reserve. Caso esteja usando fundo falso, desconsidere o volume morto nessa conta. Assim temos que 12 + 12 = 24. 1/3 de 24 são 8 litros;
Adicionar 30% de água fervida (18 litros) à panela de mostura para elevar a temperatura para 65 ºC. Deixar em repouso por 45 minutos;
Do mosto restante, e desprezando o volume morto do fundo falso (o que dá 34 litros), remova 50% (17 litros) da panela de mostura e transfira para a panela de fervura. Aqueça até 88 ºC. Lembrando que essa panela já contém 8 litros de mosto à 88 ºC;
Adicionar à panela de mostura mais 30% (18 litros) de água fervendo para elevar a temperatura de mosturação para 72 ºC. Repousar por 30 minutos;
Transferir 38% (13 litros) do mosto para a panela de fervura e aquecer até 88 ºC;
Devolver todo o mosto da panela de fervura para a panela de mostura, elevando a temperatura a 78 ºC. Descansar por 20 minutos;
Recircular e lavar a cama de grãos até obter o volume desejado;
Ferver por no mínimo 60 minutos, sendo que tradicionalmente as Lambics são fervidas por até 4 horas, o que garante uma quantidade de açúcares simples suficientes para acidificar a cerveja sem causar prejuízos ao teor alcoólico.
A composição normal de uma Lambic é de 60 a 70% de malte Pilsen e 30 a 40% de trigo não maltado. Pode ser usado qualquer outro cereal não maltado, como aveia, centeio, arroz, milho, sorgo ou trigo sarraceno também.
Para simular as Lambics tradicionais, fazendo cervejas "tipo lambic" ou pseudo-Lambics, pode-se usar como fonte de levedura a lama que vem nas próprias garrafas desse tipo de cerveja. Tanto a fermentação quanto a maturação devem ser conduzidas em barril de madeira, e normalmente levam até um ano para serem concluídas.
O lúpulo não é o protagonista desse tipo de cerveja. Não é uma boa ideia combinar o amargo com o azedo, o que pode gerar gosto de vômito na bebida, já que no vômito existe o suco biliar (amargo) e o ácido clorídrico (azedo). É dispensável dizer que o gosto não é agradável.
Para que o produto final se aproxime das lambics, é altamente recomendável usar lúpulos velhos numa proporção de 4 a 5 gramas por litro de cerveja, e adicionado todo o lúpulo de uma vez no início da fervura, para que ele perca todas as propriedades de aroma.
Pode-se também usar lúpulo novo, mas nesse caso é recomendável combinar o Turbid Mash com Kettle Sour, isto é, azedar o mosto antes de lupular, tendo em vista que bactérias láticas são intolerantes ao lúpulo e provavelmente morrerão com sua adição no mosto. Assim, logo após lavar os grãos, adiciona-se kefir, kombuchá, yakult, malte ou outra fonte de bactérias, lembrando de aquecer a panela a 40 - 50 ºC até o pH bater valores entre 3,2 e 3,5. Feito isso, deve-se ferver o mosto normalmente, adicionando pouco lúpulo, preferencialmente Saaz ou outro lúpulo nobre, numa proporção máxima de 10 gramas para 60 litros. Lembre-se: o amargor não é o protagonista aqui.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Fontes Alternativas de Bactéria: bora tentar?

Introdução geral: bactérias e sua importância: Para a maior parte das cervejas, são uma praga! Para outras, uma dádiva. São elas as protagonistas de hoje: as bactérias! Quem nunca fez uma Weiss que ficou com um biofilme por cima, um cheiro que remete a Iogurte e um sabor azedinho? Felizmente, eu não! Mas já vi acontecer muito isso, principalmente em cervejas pouco lupuladas. As bactérias estão por toda parte e crescem numa velocidade muito maior que as leveduras. A maior parte delas é esmagada por compostos do lúpulo fresco, mas algumas resistem bem a esses compostos, havendo até aquelas que são imunes a eles. As bactérias que nos interessam são de dois tipos: as de fermentação láctica e as de fermentação acética. Vamos abordar cada caso com os principais exemplares. As bactérias de fermentação láctica são as que fazem o primeiro trabalho de decomposição dos alimentos e são as principais responsáveis por azedar coisas em casa, como feijão e arroz amanhecido. São também

Por uma Wild Beer legitimamente brasiliana! Bora?

Em outro texto expliquei o que são Wild Beers e Lambics, por alto, claro. Nesse texto pretendo falar um pouco sobre a forma como fiz algumas Wild Beers com relativo sucesso, bem como as modificações que pretendo fazer no método. O objetivo é ambicioso: criar uma cerveja legitimamente brasileira, como a Catharina Sour, mas impossível de ser produzida em outro lugar no mundo, como as Lambics. Acompanhe o textão. Há muitos e muitos anos o homem aprendeu a dominar a fermentação. Entretanto, enquanto na produção de cervejas a tecnologia evoluiu muito em termos de levedura, na produção de vinhos de mesa não houve uma diferença tão grande, como houve na cerveja. Em tempo: não estou aqui a julgar produtores de vinho, bebida que também aprecio, nem para dizer que há demérito na produção de vinho ou para dizer que enólogos são inferiores. Longe de mim fazer algo do tipo. Cada qual com seu trabalho e com seus méritos, e o simples fato do vinho ser uma bebida mais glamorosa que a cerveja já

Funky: o que é?

Acima de tudo é uma propriedade amada por uns e odiada por outros. Mas o que é, efetivamente, o funky? O funky é uma mistura de aromas e cheiros gerados por algumas espécies de Brettanomyces. Dentre eles, elencam cela de cavalo, curral, plástico/borracha queimada, bode, estábulo e queijos azuis (que alguns chamam também de chulé, vai entender). Esses aromas são gerados num primeiro momento devido ao metabolismo das Brettanomyces, que ao contrário do que alguns dizem por aí, gera álcool na fermentação, assim como as Saccharomyces. Todavia, nem só álcool gera a levedura. As Brettanomyces geram também ácidos valérico e isovalérico e outros compostos, como álcoois superiores semigraxos que possuem certo cheiro desagradável para alguns e agradável para outros. Basicamente, o queijo azul surge por causa dos ácidos valérico e isovalérico. Esses dois ácidos são associados também ao fedor de chulé. Estão presentes nas raízes de Valeriana, uma planta usada para fazer um chá calmante e anticonvu